O treino de armas, muito além de simplesmente desenvolver certa habilidade e fluência no manejo de alguns instrumentos, proporciona ao praticante a chance de treinar com uma abordagem nova (distinta daquela feita nos treinos de mãos vazias) uma série de conceitos e princípios que têm vital importância no estudo ao Aikidō. É ver:
Maai – O maai, traduzido literalmente, significa “a distância harmônica”, sendo um princípio de importante conteúdo para a prática do Aikidō. Como o próprio nome sugere, indica a distância correta que o praticante deve manter de seu antagonista, distância que se situa além da envergadura de ataque deste. Justamente, o treino de armas favorece o estudo de tal conceito, uma vez que, neste tipo de prática, os participantes têm seu alcance físico ampliado pelo instrumento que empunham. Para o aikidoísta que treina o maai, o fato de seu oponente possuir uma arma em mãos implica realizar uma correta avaliação das possibilidades deste, que vão variar conforme o posicionamento (hanmi no kamae) e o tipo de arma, haja vista ser o bastão muito mais maleável, em termos de movimento, do que a espada. Assim, aos poucos desenvolve-se a sensibilidade do praticante em avaliar corretamente a situação em que se encontra. Tal sensibilidade, como em tudo no Aikidō, tende a extrapolar a mera prática no dojo, e passa a acompanhar o aikidoísta no seu cotidiano. Até mesmo porque o conceito de maai não se limita a este sentido físico estrito que se acaba de explicitar, mas envolve a sensibilidade da pessoa em perceber o máximo de manifestações possíveis à sua volta (e acrescentaríanos, no seu interior), os objetos que a cercam, o estado de ânimo das pessoas, as suas intenções, etc. Maai também remete a uma noção do que os ingleses chama de timing, isto é, a ação no tempo correto. Um kata de Aikidō, que seja bem a tempo e que respeite a fisiologia do movimento humano, faz o uke ter uma sensação de completo vazio, como se fosse abrir uma porta e, do outro lado, alguém a abrisse um instante antes, na mesma velocidade, fazendo-o cair num vácuo; idealmente, ter o nague um bom maai significa oferecer tanto negativo quanto o uke lhe oferecer positivo, tanta aceitação quanto o uke oferecer iniciativa, para somente a seguir assumir a condução e finalizar o movimento. É bom ressaltar que se trata de um conceito prático, desenvolvido com o treinamento constante e consciente, não podendo ser apreendido com a leitura de textos ou com esforço apenas intelectual. Tal ressalva, aliás, é válida para todos os conceitos trabalhados em Aikidō.
Tai sabaki – novamente começando com a tradução mais literal, tai sabaki é o “movimento do corpo” quer dizer, o princípio do deslocamento. O tai sabaki não significa apenas “se movimentar”, mas antes encerra um sentido finalístico estratégico, pois é em essência um movimento realizado com a intenção de se alcançar determinada posição relativa mais vantajosa, realizada em consideração à posição inicial do oponente e de seu deslocamento (velocidade/direção). A posição que se busca é a de sombra em relação ao antagonista, um lugar em que ele não possa ver nem alcançar, mas em que é visto e está ao alcance. Claro que tal posição, além de relativa, é efêmera, pois o dinamismo dos movimentos sempre tende a colocar os praticantes novamente em conflito, a não ser que um deles, harmonizando-se ao movimento do outro (situação de unidade), consiga conduzi-lo de maneira eficiente. Uma conclusão a que se chega é que nenhum praticante pode desenvolver o tai sabaki, que implica deslocar-se em função do outro, se antes não dominar as técnicas do próprio deslocamento, isto é, o auto-controle e a excelência na execução de tenkan, irimi, avanços, recuos, passos e passadas (em uma palavra, o caminhar), motivo pelo qual os movimentos básicos do Aikidō devem ser treinados à exaustão. Justamente, o treino de armas é uma excelente oportunidade de se praticar o tai sabaki e os movimentos em geral em um ambiente que exige mais do praticante, pois se é relativamente fácil contornar um oponente de mãos vazias, um uke com uma espada impõe ao nague a necessidade de deslocamentos maiores, mais rápidos e mais precisos. Pode-se assim dizer que o estudo do tai sabaki no treino de armas torna muito mais fácil a execução de movimentos eficientes no treino de mãos vazias, ampliando a noção de espaço-tempo do praticante e sua fluência no deslocar-se.
Hara – situado aproximadamente quatro dedos abaixo do umbigo, o hara é o centro físico e energético do corpo humano. Para os japoneses, o hara é onde está a alma, e não à toa o ritual do seppuku (auto-imolação praticada antigamente pelos Samurais, por questões de honra) se dá justamente através do harakiri, literalmente o “corte do hara”. O centro e a centralidade são fundamentais na prática do Aikidō. Primeiro, num sentido mais metafórico (que se pode discernir, por exemplo, na expressão “fulano é um sujeito centrado”), o centro é a postura interior que o praticante precisa desenvolver, como pré-requisito básico para todo o posterior treinamento. A postura (por definição um estado de ânimo interior, que naturalmente se expressa externamente) é o primeiro princípio do Aikidō. É, idealmente, um estado de concentração no hara (também chamado de saika tanden), em que o intelecto não mais predomina, em que o praticante não anseia, não busca antecipar eventos ou formular hipóteses com o uso exacerbado do raciocíonio (bem ao contrário, como se vê, do cotidiano do homem ocidental, ou ocidentalizado). Tentando exemplificar, uma boa postura do nague é aquela em que ele não se preocupa com o que o uke vai fazer, se ele vai chutar ou socar, na cabeça ou no abdômen, ou em que momento específico vai ele realizar seu movimento; o nague deve apenas aguardar sereno e agir conforme a necessidade e a possibilidade, procurando harmonizar uma situação que a ele porventura se apresente. No treino de mãos livres, pela situação de improviso e de sensibilidade de leitura que exige, o jiu waza é um excelente exercísio e postura centrada, no sentido que se acabou de discorrer. Já no treino de armas, a presença de uma espada ou de um bastão nas mãos do uke tende a assustar e deixar mais ansioso o nague, que haverá de redobrar esforços de concentração no sentido de alcançar este estado de alerta relaxado que é a postura. A habitualidade no treino de armas, assim, desenvolve no praticante um mais rápido desenvolvimento da postura, e uma maior fluência em voltar a centrar sua energia quando porventura uma situação externa o tire do centro. Com o tempo, o praticante tende a treinar em tal estado meditativo, e a levá-lo para sua prpática cotidiana, de modo a contornar ou minimizar situações de stress, grande causador de males psíquico-físicos nos tempos atuais.
Agora de um ponto de vista mais técnico-marcial, não dissociado daquele outro, a centralidade é a melhor geometria física para a execução dos movimentos pelo nague e a sua conução do uke. No centro físico é possível concentrar com mais facilidade todo o esforço do corpo, isto é, obter o máximo de resultado com o mínimo de força. Ao praticante observador não escapará que a quase totalidade dos movimentos de Aikidō é realizada no centro ou em posições geométricas simétricas a ele, e que uma das principais dificuldades dos praticantes iniciantes reside justamente na perda do centro durante a condução, geralmente por dificuldades na coordenação de movimentos, e na necessidade de pensar durante a execução do kata. O treino de armas melhora sensivelmente a noção de centralidade do praticante, na medida em que a espada e o bastão funcionam como uma espécie de baliza para a posção correta do corpo, um indicador material e palpável de onde deve se situar o kamae. É impossível, fora do centro, realizar um corte de espada eficiente ou conduzir alguém com o auxílio de um bastão, de modo que o praticante do treino de armas rápida e instintivamente aprende a trazer seus movimentos à frente do centro, e a levar seu centro para onde está o movimento, imprimindo, no ponto de foco, a energia de todo o corpo, agindo coordenadamente na condução. Neste sentido, o treino de armas também contribui para a plasticidade dos movimentos do praticante, o que em Aikidō é sinônimmo de eficiência na execução das técnicas.
Kokyu – a respiração correta é esencial para a vida, e do seu ritmo e completude derivam diretamente o estado de ânimo de qualquer pessoa. Uma função tão fundamental para o ser humano naturalmente tem grande relevo na prática de Aikidō. O correto respirar é definitivo para se alcançar a postura centrada de que já se falou. Do ponto de vista técnico, a respiração, juntamente com a mentalização, é um dos elementos sutis que devem ser coordenados com o movimento do corpo dentro do objetivo de aprimoramento o kata; saber quando inspirar e quando expirar é muito importante para uma técnica fluída e bem executada. Os momentos ou fases da respiração são fáceis de assimilar no treino de armas, pois nele se executam movimentos amplos em que predomina nitidamente uma fase negativa ou positiva do respirar, como por exemplo no corte da espada: eleva-se a lâmina inspirando, criando potencial, para em seguida cortar expirando, dando vazão ao potencial criado; o movimento do corte treinado repetidas vezes (não de modo mecânico, mas consciente) faz o praticante assimilar a correta respiração sem a necessidade de se preocupar com ela – pois vai ocorrer naturalmente – e o condiciona a respirar de maneira saudável e eficiente em todos os outros movimentos que realiza posteriormente, inclusive no treino de mãos vazias.
Kiri – Do corte de espada deriva diretamente a maior parte das técnicas do Aikidō. Assim, estudar técnicas com a espada é conhecer, em certo sentido, a etimologia dos movimentos no Aikidō, sua origem primeira. E muitas questões técnicas importantes podem ser diretamente transferidas do manejo da espada para o treino de mãos livres , como o corte (kiri), isto é, a combinação de pressão (feita na chave, por exemplo) com deslizamento (translação do corpo). É sabido que a força de um kata reside justamente na capacidade de se coordenar um maior número possível de movimentos, juntamente com respiração, mentalização e sentimento, e o treino de armas desenvolve tal coordenação intensivamente, ao dificultar os movimentos pela inserção de um elemento alheio (pelo menos no princípoio) ao praticante. Por outro lado, é detalhe bastante fundamental a produção de contraste (positivo-negativo) para a obtenção de uma técnica eficiente, de modo a conseguir um movimento da arma rápido, forte e sem tensão. Nas técnicas de mãos livres, o contraste é aplicado na quase totalidade dos kata, como uma forma de gerar desequilíbrio e tornar leve a condução; o melhor exemplo neste sentido talvez seja o tenchi nague, embora, como dito, em todas as técnicas deva estar presente a polarização do movimento. Finalmente, de se destacar que o treino de armas, principalmente com o bastão, é uma forma bastante didática de se apreender as técnicas de alavanca, que sempre são bem nítidas neste tipo de prática, até mesmo por uma questão de necessidade do movimento.